
ANTÓNIO JOSÉ FORTE
O “mano Forte”, como foi apelidado por Luiz Pacheco, é talvez um dos grandes últimos poetas do movimento surrealista da poesia portuguesa, cujos versos “nos ficam como se os houvéssemos descoberto num muro, numa parede que nos perturbou o caminho, porque fulgura neles a feroz exemplaridade dos desastres (…)”, escreveu Diogo Vaz Pinto. António José Forte marcou a cultura portuguesa nas décadas de 50 e 60, junto do grupo do Café Gelo e enquanto encarregado das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, levando o seu espírito bem-humorado e uma Citröen carregada de livros por todo o país. Publicou somente cinco livros em vida (onde se inclui um livro para crianças), mas a sua atividade cultural foi vasta, participou em revistas e antologias, sendo uma das figuras mais acarinhadas do meio literário. A sua poesia está reunida no volume Uma Faca nos Dentes, editado em 2017 pela Antígona, prefaciada por Herberto Helder e de onde partilhamos este poema. Nasceu na Póvoa de Santa Iria em 1931 e veio a falecer a 15 de dezembro de 1988, tinha 57 anos.
o poeta em lisboa
Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.
Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.
Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha – numa música secreta, inaudível.
Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.
Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.
Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.
Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.
Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.
Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.
Uma Faca nos Dentes
Antígona, 2017
DILÚVIO
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